Este blog surge a partir do módulo "Arte e Literatura: Humanidades Médicas I" do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. O módulo tem por objetivo explorar, junto com as e os estudantes de graduação em Medicina, outras dimensões da práxis médica que não apenas as competências tecnológicas duras. Para isso, lança mão de recursos pedagógicos vivenciais e audio-visuais, trazendo elementos da Literatura, das Artes Plásticas, do Cinema, bem como das experiências pessoais compartilhadas pelas e pelos estudantes.
Apesar disso, hoje o blog não quer se definir. Aqui encontram-se estranhamentos e aleluias cotidianos de um contínuo tornar-se.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Bem, te vi


Foi assim: um bem-te-vi pousou sobre os olhares das esfinges que se adivinhavam mudas e misteriosas. As mãos entrelaçadas com ternura já sabiam:
"Não. Não me decifra, porque o sempre nunca existiu. Fica aqui enquanto há tempo."
O mais lindo que existe é sermos frágeis, meu bem. E vivermos.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Das cousas diminutas


Abujamra declamando o maravilhoso Manoel de Barros
Apanhador de desperdícios

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Às canhotas e aos canhotos de espírito da minha vida

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto;
e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me es
quecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.










(Santos e Loucos - Oscar Wilde)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Sobre o olho de poeta



"'-- Dito, mesmo você acha, eu sou bobo de verdade?' 'É não, Miguilim, de jeito nenhum. Isso mesmo é que não é. Você tem juizo por outros lados...'"








(João Guimarães Rosa - Manuelzão e Miguilim, p86)

sábado, 29 de outubro de 2011

De la richèsse


"Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades."






(Manoel de Barros -- Poesia completa)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

My magic cave

"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão. porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero."













(Bernardo Soares -- Livro do Desassossego, trecho 1)

Sobre o orgulho

"Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Como eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do Deus. Solidão é ter apenas o destino humano.
E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda.
Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça -- que se chama paixão."









(Clarice Lispector -- A paixão segundo G.H., p 170)

domingo, 21 de agosto de 2011

Eavesdropping

Passarinhos embalados no fio.
Manhã morna de Domingo.
São velhinhas assobiando na calçada.
Fiu-fiu, fifi-ri-fiu!
Conversinha boa de espiar.
Só entende quem fala manoeldebarrês,
quem fala criancês.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Au Café

Dia desses, fui comer uma coisinha doce só porque quis.
Sentei-me à mesa e sorri para o mundo.
Comi quietinho e atento -- é que comer sempre exige certa atenção.
As bochechas rosadinhas, o peito gostando.
Os ouvidos ouvindo Cartola colorindo as telhas da garagem.
Verde, amarelo, azul, vermelho, branco, verde...
O gosto de casa de vó, de rede balançando, de tardinha, de estrada bonita.
Eu, transbordando humanidade.

sábado, 6 de agosto de 2011

Junguiando

Em meu caminho com árvores e seus troncos retorcidos, cheios de nós, rondam-me arquétipos. Anima põe sobre o corpo leve um manto cheio de florzinhas. Seus olhos olham através. Tudo é etéreo, e Anima quase levita em sua candura e crueldade. Observa-me fugidia, me estende a mão e me ordena com doçura e intestinos: "Vem". Aproximo-me de si e ela com maldade me explica: "O caminho é estreito, e você, pesado." Por fim, sorri: "Arranque o braço esquerdo. Deixe-o sangrar até restar apenas ausência. Assim, alcançamos a eternidade". Hesito. Animus, por sua vez, me observa silencioso. Ele tem mãos gentis e um raminho de louro atrás da orelha esquerda. Fala grave e orgulhoso: "Fica", e me oferece um punhal. "Não se vive sem dor." O campo é verde, e há tanta vida brotando... A cada vez que me aproximo de um para, logo em seguida, buscar o outro, damos os três um passinho, e nessa dança desesperada eu rego o chão com água de mar. Ganho tempo. Rezo para que não chegue o dia da amputação. É que, na verdade, eu mesmo posso me liberar deles. Sim. Quem, entretanto, me libera de mim? Nutro ainda outro delírio. Anima e Animus se vão, e eu, inteiro e velho, desapareço entre o céu e a terra, vaga-lume que se apaga. Nem eterno, nem imortal, o gozo é efêmero.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Amador













Seu José Braga, debaixo do chapéu de antigo tecido,
observou-me por uns instantes no consultório com aqueles olhinhos
de quem brotou de um livro do Guimarães Rosa,
até que deixou escapulir:
"Eu acho tão interessante como o doutor escreve
tudo retinho sem ter linha em baixo!"
Depois intercedeu por sua senhora junto à doutora dos cachinhos amarelos
"A dotora num se incomoda de dar uma olhadinha na minha reinha?"
E Dona Lunguinha entrou toda cheia de graça
no lugar do cuidado -- esse espaço sacralizado pelas pessoas.
Ah! Seu Zé Braga e Dona Lunguinha...
Eu, que empalideço a cada dia
e que tenho os ombros estreitos para melhor esconder
a pérola glacial que carrego ali
no centro de mim mesmo, eu,
cujas têmporas e orelhas jamais foram acariciadas,
é que me espanto com os mistérios.
Meu avô era loirinho e cheiroso.
Morreu mendigo, numa poça de vômito,
com gordas moscas profanando-lhe as cãs.
Seu Zé e Dona Lunguinha tem oitenta anos
e andam de mãos dadas.
Minha alma vive sozinha a pão e água num quartinho escuro.
O cata-vento gira cortando o entardecer e suas sombras.
Cantam as boas-noites com seus cheiros ancestrais.
Que calor é esse que não passa, meu Deus?!
São os poros que ardem querendo.
É a fome.
Ai! é a sede.

domingo, 10 de julho de 2011

Meu fado

Quando eu nasci, veio a mim um anjo da parte do Senhor,
pintou-me o peito de anil e plantou ali fundo
um pé de gerânio roxo.
"Há de ser assim para que fique bonito",
disse com ar de chef e partiu.
Desde então, acalento com o maior zelo
essa angústia bendita que me acompanha
e que me enriquece.
Adubo-a, protejo-a do sol forte, rego-a.
Chorar, eu prefiro fazer pertinho de Deus,
quando ele me abençoa e me enche de poesia --
é uma flor que se abre.
Sou um vaso que transborda por não caber mais em si!
Minha alegria e minha tristeza são uma só coisa.
Tudo é graça divina. Plenitude.
Se tento me afastar, arrancar deste chão o talento escondido,
abre-se uma vala por onde toda beleza feinha escorre,
e a pele vira terra seca do sertão.
Fragmento-me todo rachado.
Sucumbo ao desespero da futilidade
e sinto vertigens de morto-vivo.
As pessoas nascem para certas coisas na vida.
Eu nasci para isso:
para cultivar melancolia.


quinta-feira, 7 de julho de 2011

Para embalar mansinho

"Antes que venham os ventos e te levem
do peito o amor -- este tão belo amor,
que deu grandeza e graça à tua vida --,
faze dele, agora, enquanto é tempo,
uma cidade eterna -- e nele habita.

Uma cidade, sim. Edificada
nas nuvens, não -- no chão por onde vais,
e alicerçada, fundo nos teus dias,
de jeito assim que dentro dela caiba
o mundo inteiro: as árvores, as crianças,
o mar e o sol, a noite e os passarinhos,
e sobretudo caibas tu, inteiro:
o que te suja, o que te transfigura,
teus pecados mortais, tuas bravuras,
tudo afinal o que te faz viver
e mais o tudo que, vivendo, fazes."












(Sugestão, Thiago de Mello)

quarta-feira, 29 de junho de 2011

...


"Como és belo, amado! Belo e perecível!"





(Adélia Prado - Poesia Reunida p. 206)

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Narrativas do silêncio -- parte final -- Solitude

É tão bom olhar a densa névoa dourada das quatro e meia.
Entra na pele um fôlego de vida.
Fecho os olhos e acalento estas docilidades:
tenho três anos e adormeço sentindo o cheirinho bom dos cachos recém-frisados de mainha,
painho faz cócegas na planta do meu pé rechonchudo com a barba por-fazer,
meu irmão anda pela casa com as pisadas de quem acabou de aprender a andar, exibindo os quatro dentinhos e segurando sempre uma escova de dentes -- andar sem segurar uma escova é muito perigoso.
Eu sorrio quietinho vivendo tudo.
Tenho saudades de chorar por minha avó quando ela partia.
E de estar assim desconsolado em público.
Ô pai, ô mãe, cadê vocês que eu só reconheço dentro de mim?
É a névoa das quatro e meia e as chamas de vela que meu espírito respira.
Sobe um cheirinho de bolacha cream-cracker passada na frigideira de minha tia.
Ah! como é gostoso lembrar esses cheiros, cores, jeitos, abraços, partidas...
Nutro-me assim
Inflo o peito e fico grande.
É o futuro que eu adivinho recordando.
Na luz escurecida do fim-de-tarde não há temporalidade.
Há cadeiras-de-balanço, rendas brancas, pés-de-jambo, vitrolas, retalhos, cheirinho de café, de pudim-de-leite, de biscoito-de-goma.
Eu mesmo faço um céu para comer e ponho no forno a massa que me deram desde a antiguidade.
Ouço os pássaros e sei.
É este ar que me preencherá.
É neste calor que irei me encurvar e enrugar.
É sob este luar que há de me banhar em breve que chorarei molhando-me todo por dentro
e que amarei em desmedida.
É aqui, neste exato lugar em que já sempre co-existo.
O que eu tenho é raiz e um livro no colo.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Poeminha do Contra


"Todos estes que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!"








(Mario Quintana)

sábado, 4 de junho de 2011

Narrativas do silêncio - Parte II - O Fundamento


Um pé seguia o outro apenas por hábito, calçados em quadriculado roxo sobre o fundo branco. Ela, no entanto, era toda imobilidade. Estava certa de que continuava exatamente naquele ponto a exatos cinco centímetros da rachadura na calçada de onde brotavam plantinhas vivas e teimosas. Ainda podia sentir a pressão da lâmina enferrujada e fria da faca contra seu ventre. A truculência do assaltante. Seu calor sujo. A leveza de uma perda. O sol do meio-dia abrindo caminho por entre os cabelos pretos, no meio da cabeça. Era meio-dia, meu Deus! Nem gritar gritou. Era tudo tão absurdo e óbvio... Não, nada havia de muito valor no que lhe fora tomado, exceto o celular com a discografia de The Smiths. Tomou-lhe a mochila das costas e embrenhou-se pelas ruelas labirínticas depois da casa de muro amarelo pichado. Ela ficou ali. Toda perplexidade. Olhou para o céu -- o que se espera de uma garota assaltada sob o calor mais pleno do sol? Havia uma nuvem em forma de fígado e o céu muito azul. E se aquilo tivesse sido a última coisa a ver na vida? Se ele tivesse... Fechou os olhos para sentir a dor. A nuvem partiu-se feito um algodão de que se arranca um pedaço.
A moça parou embaixo de uma árvore. Não faltava muito para chegar a casa. Só Deus sabe como havia chegado tão longe sem notar. Tudo em que pensava era a imagem do horror: o sangue nutritivo e hepático encharcando as plantinhas na calçada quente do sol. E ela, mais branca, mais branca, mais branca. Tudo era tão cru e banal. Todos os dias, milhares de jovens morrem em pleno dia, abertos para o mundo, com o sangue se esvaindo sem esperança. Sentiu náusea. Por um instante, ela fora todos eles. A alma dividida em quem-sabe-quantas. Mil histórias de vida e de morte eclodiam vertiginosas atrás de seus olhos. Teve de apoiar-se no tronco da árvore para não cair no abismo. Se partisse, ninguém poderia mais ajudá-la. Ofegava feito uma parturiente.
Uma brisa redentora e sábia soprou mansinha, arrastando folhas secas e areia pelos ladrilhos do meio-fio em desalinho. Resgatada que fora do transe, respirava agora mais tranquila. O suor na testa e no queixo parecia gotículas de orvalho. Não havia se encontrado com sua morte. Tudo agora tinha uma outra clareza. E o ar que a todos envolve nunca fora tão cristalino. Sentada no meio-fio embaixo da árvore, olhou ao redor e soube: estava só. Não pôde morrer a morte de ninguém, e ninguém morreria a sua.
Misteriosa e serena, como quem sabe das coisas da vida, atirou para trás os cachos que pendiam sobre os ombros e ergueu-se com uma força trêmula, mas decidida. Em direção a casa, era ela quem caminhava.

domingo, 22 de maio de 2011

Narrativas do silêncio - Parte I - O Desamparo

No exato momento em que a mãozinha esquerda segurou canhestra o primeiro giz-de-cera (anil, adivinho), soube: havia sido marcado para a inadequação. Com os dedinhos ágeis e brancos abria a merendeira para pegar as bolachas que comia só, sentadinho no canto perto da grade da escola com seu cabelinho partido com precisão e com as sandálias de fivela ajustadas aos pés num abraço. As outras crianças brincavam soltas e descabeladas.
Lembrava-se dessa cena da infância quando da chaleira saiu um cheirinho matinal de hortelã para retirá-lo do transe. Pôs-se de pé com alguma dificuldade e caminhou vagaroso até o fogão. As franciscanas arrastavam na cerâmica vermelho-telha numa cadência gostosinha de ouvir. Xic-xic, xic-xic... Fogo apagado, pano-de-prato bordado enrolado na asa da chaleira, xícara verde-musgo enchendo de-va-gar-zi-nho. Cheirinho bom entrando nos pulmões velhinhos e acostumados àquele ritual matutino. Como não pode perceber, meu Deus, que este era já sempre seu destino? A memória empoeirada tinha o peso de uma premonição. Haveria de, desde sempre, estar alhures, trilhar descaminhos, ser a imagem espectral, o invertido, o forasteiro. É verdade, no entanto, que encontrou também boas amizades em suas errâncias. Por que ele havia de ser o único canhoto no mundo? Não era. Conheceu alguns deles. Livres, criativos, sensíveis. Perturbados. Sim, porque a liberdade e a lucidez requerem uma certa medida de loucura. Como surpreenderam-se mutuamente com a vida!
Um pardal feinho pousou no parapeito da janela, mirou-lhe os olhos e, sem cerimônias, voltou para o mundo largo. Será que volta? Ele mesmo, depois de levantar voo, tentou voltar, mas já era tarde. Lembra-se de como foi difícil reencontrar os pais. As palavras caiam trôpegas e maltrapilhas pelos cantos da boca. Tudo o que ficou foi silêncio. Não volte, passarinho. Voe alto que eu fico feliz se você for forte e livre. Agora que seus pais já haviam descansado seus fardos, escrevia-lhes cartas todos os anos, perfumava-as e depois as queimava. Sabe que é inútil, mas ajuda a cobrir a solidão e a saudade. Mas não chora. Guarda as lágrimas para quando chove. Vai ao jardim banhar-se de chuva e lavar-se por dentro. Fica quieto por uns instantes só sentindo tudo. Ouve suas plantas e pisa a terra descalço. Sempre pega pneumonia depois de uns dias. E melhora. Tem horror de ser enterrado em caixa de concreto. Não. A vizinha já sabe que quando ele morrer quer ser enterrado direto na terra. Assim pode, quem sabe, enfim dar vida a alguma coisa. Certa vez, quis escrever aos pais um pedido de desculpas por querer morrer.Ele que morrera de pequenas mortes todos os dias. E foi se tornando uma estátua de gesso de dentro para fora. A vida toda escorrera-lhe por entre os dedos. Os afetos embrutecidos. O corpo domado. Os amores silenciados. Foi nessa época que os outros canhotos perceberam que ele nunca soube mesmo voar: ele mesmo deixou que depenassem suas asas há muito tempo. Ele havia secado.
Levou a borda fina da xícara de cerâmica um última vez aos lábios meio molhados. A mão trêmula como a de sua tão querida bisavó. Pôs os óculos para ver as horas. Ainda tinha tempo para ouvir uma música na vitrola. Tomou a bengala nas mãos para levantar-se e, num espasmo bendito, pensou que, no lugar onde for enterrado, brotarão gerânios. Vermelhos como o amor que ele nunca conheceu.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Da sisudez




"O niilismo está bem perto do espírito da seriedade, pois ao invés de perceber sua negatividade como um movimento vivo, ele concebe sua aniquilação de forma substancial. Ele quer ser nada, e esse nada com o qual ele sonha tanto é ainda um outro tipo de ser"





(Simone de Beauvoir - Por uma moral da ambiguidade)

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Com o risco de parecer clichê


É difícil acontecer em cidade grande, porque mal se vê o céu. Quando muito, é possível ver a lua por detrás de uma nuvem avermelhada que muito bem poderia ser fumaça. Mas isso não vem ao caso. O que eu ia dizendo é que caminhava distraído quando, de repente -- e não há outro jeito -- a estrela cadente riscou o preto da noite. "Então viver é isso, meu Deus! Como é bonito e inútil..." Sim, porque viver é ser uma faísca que se atira ao Mistério, num corte fino e preciso sobre o tecido da noite escura. Mal começa, e já não é coisa alguma. O que acontece com a faísca no instante seguinte em que já não mais se vê é segredo guardado nas entranhas do breu com seu Silêncio. Mas o que é possível saber é que, durante o instante quase inobservável em que a faísca escreve a si mesma no mundo, sua luz é, ao mesmo tempo, seu destino e sua mais extrema auto-afirmação. A faísca é libertária. Rasga a noite com a violência de uma dúvida. No entanto, ela não tem escolhas nem porquês. A faísca brilha sem motivo e é lançada na incerteza. Tudo o que pode e o que sabe é ser faísca. Dançar livre e ébria ao som do crepitar da madeira em brasa. E é nisso que consiste a sua beleza. Ela é inútil, sem sentido e fugaz: eis o encanto.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Lisbon Revisited

"NÃO: NÃO quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me
enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!"












(Álvaro de Campos - Fernando Pessoa, Poesias)

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Des souvenirs légers

É gostoso o cheiro da madrugada depois de chuva. O céu limpo se veste do índigo-perolado véu lunar, e damas-da-noite florescem. Brotam lembranças de noites passadas, quando, em certa época do ano, à noite, a lua decidia me embalar o sono e iluminava-me a cama inteira. Às vezes, eu deixava de lado o lençol para melhor sentir sua névoa prateada em minha pele. É a lua que nutre meus sonhos. A madrugada surte em mim o efeito de uma epifania etérea, sempre obscurecida pelo torpor do dia. E, ainda hoje, em noites assim claras, banhado em luz fria, tenho a impressão de ouvir no silêncio quase místico canções de ninar. Brilham sonzinhos de xilofone no céu.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Pra cobrir a solidão



"Pensei em repetir palavras mágicas para concentrar energia em cada uma delas, mas nenhuma me ocorreu. Abracadabras, shazams. Talvez não fossem necessárias, porque eu estava carregado de amor por nós todos. Falo banalidades, sei, mas amor é magia, condão, pedra de toque."




(Caio Fernando Abreu - Triângulo das Águas)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Aquela lá


Dia cinza a agudiza. Tudo fica quieto como se sempre já tivesse estado lá à espera. Em dias assim, também ela espera com atenção. Canções empoeiradas atravessam a fina e escura malha da caixinha de som e, pesadas, sedimentam-se espalhadas no chão ao seu redor. Na tela do dia frio, pintam cores densas que coalescem e criam mundos impossíveis. Como é possível ter vivido tantas infâncias, adolescências e romances e não os ter vivido? Os mundos que cria e que (re)produz, as (bri)colagens de memórias e de estórias, os sentimentos costurados em colcha de retalhos, tantas letras em si, Deus! Onde estava, enquanto a pele engrossava, os cabelos começavam a se despedir e...? Acho que preciso de um chá verde. Bem morninho, por favor. Que é pra ver se o peito aquece. Mas, como eu ia dizendo, sonhar não é ruim, não. É gostoso, na verdade. Ficar observando as gentes da janela com violetas também. Mesmo tomar chá ou ir ao cinema sozinho pode ser uma delícia. O que mata é esse silêncio que abraça gelado em dia cinza e que nos corta com alguma lucidez maldita. Fecha a janela sobre uma das folhas da violeta, tirando-lhe o fôlego por um instante. Na biblioteca, os livros mofados. Na cozinha, a pia cheia de panelas e travessas sujas de já esquecidas refeições. À mesa, ninguém. Nunca.

sábado, 9 de abril de 2011

Como se fosse Domingo à tardinha...


E existem também as alegrias mansas. Elas nos chegam assim tão macias e mornas quanto a lembrança de um abraço de avó. A alegria mansa não se localiza. Ela vem não se sabe de onde, e fica até a percebermos. Assim, descoberta, perde sua razão e evanesce. O instante mesmo em que o dedinho da criança toca a bolha de sabão. Sorriso bobo que não se sabe sorriso. Nomeado, já é outra coisa.

Só pode ter candura quem já sentiu a chegada doce e a despedida de uma alegria mansa. Ah! como dá saudade, meu Deus... Uma saudade sem rosto, sem nome, sem memória. Saudade que tateia o vazio entre eu e a leveza do mundo. O ar em minúsculos cachinhos escorre diáfano entre os dedos da mão espalmada à procura de quê. E, de repente, se ri por ter percebido que se estava a ponto de chorar só por causa do pôr-do-sol.

Nomeada, a alegria cala tudo. Depois de alegriazinha, fico assim silencioso por três dias, só escutando. É o corpo que escuta a vida. Passado o estremecimento, tudo volta à sua música caótica habitual. Poesia virou carne e sangue. Meu poema só pode ser escrito em braile.


terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Alquimias afetivas



"Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu lhe saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto..."




(Mário Quintana - Prosas & verso)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Sapiência

"Tinha vantagem não saber do inconsciente, vinha tudo de fora, maus pensamentos, sensações, desejos.
Contudo ficar sabendo foi melhor, estou mais densa,
tenho âncora, paro em pé por mais tempo.
De vez em quando, ainda fico oca, o corpo hostil e Deus bravo.
Passa logo. Como um pato sabe nadar sem saber,
sei sabendo que, se for preciso, na hora H nado com desenvoltura.
Guardo sabedorias no almoxarifado."



(Adélia Prado - Quero minha mãe)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Alta noite

Foi assim: outro dia, estava na varanda do apartamento, alta noite, observando atento o silêncio da madrugada -- é preciso estar atento, pois com o silêncio não se brinca -- quando, numa árvore anciã do outro lado da rua, uma folha mais ousada estremeceu e, libertando-se do galho como quem realiza seu último suspiro, dançou graciosamente em seu destino de folha desgarrada, atravessando a rigidez vítrea da noite cega até, enfeitiçada, pousar-lhe no nariz. Fitou o rapaz nos olhos por um instante. Ele era magro e turvo. Havia nele qualquer coisa que não se via, nem se podia entender. De repente, agonizante, sussurrou-lhe: "estás vivo", e tombou morta. Com uma das mãos o rapaz sufocou na garganta o grito de pavor e, em sobressalto, sentiu os poros abrirem-se para o mundo. Havia ar pétreo a lhe envolver por todos os lados -- deu-se conta de que sempre estivera mergulhado no ar e de que encharcava-se dele para respirar, tal como um peixe bebe a vida na água. Suava pegajosamente, a respiração quente e abafada, a fome repentina e, finalmente, em espasmos, surgia uma luz perigosa e morna que vinha de dentro do peito e que o inebriava, como uma grito de amor e de êxtase, ou como uma gargalhada profunda. Meu Deus! Então era verdade! Notou que segurava uma pêra madura. Examinou-a ainda por um momento sem entender, mas, subitamente, adivinhou. Abocanhou voraz a fruta macia e doce. O suco lhe escorria pelos cantos da boca, impregnando a barba-por-fazer. Era verdade.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Encontrar-se

"Não era à toa que ela entendia os que buscavam caminho. Como buscava arduamente o seu! E como hoje buscava com sofreguidão e aspereza o seu melhor modo de ser, o seu atalho, já que não ousava mais falar em caminho. Agarrava-se ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde ela fosse finalmente ela, isso só em certo momento indeterminado da prece ela sentira. Mas também sabia de uma coisa: quando estivesse pronta, passaria de si para os outros, o seu caminho era os outros. Quando pudesse sentir plenamente o outro estaria salva e pensaria: eis o meu porto de chegada.
Mas antes precisava tocar em si própria,
antes precisava tocar no mundo."







(Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres)