No exato momento em que a mãozinha esquerda segurou canhestra o primeiro giz-de-cera (anil, adivinho), soube: havia sido marcado para a inadequação. Com os dedinhos ágeis e brancos abria a merendeira para pegar as bolachas que comia só, sentadinho no canto perto da grade da escola com seu cabelinho partido com precisão e com as sandálias de fivela ajustadas aos pés num abraço. As outras crianças brincavam soltas e descabeladas.
Lembrava-se dessa cena da infância quando da chaleira saiu um cheirinho matinal de hortelã para retirá-lo do transe. Pôs-se de pé com alguma dificuldade e caminhou vagaroso até o fogão. As franciscanas arrastavam na cerâmica vermelho-telha numa cadência gostosinha de ouvir. Xic-xic, xic-xic... Fogo apagado, pano-de-prato bordado enrolado na asa da chaleira, xícara verde-musgo enchendo de-va-gar-zi-nho. Cheirinho bom entrando nos pulmões velhinhos e acostumados àquele ritual matutino. Como não pode perceber, meu Deus, que este era já sempre seu destino? A memória empoeirada tinha o peso de uma premonição. Haveria de, desde sempre, estar alhures, trilhar descaminhos, ser a imagem espectral, o invertido, o forasteiro. É verdade, no entanto, que encontrou também boas amizades em suas errâncias. Por que ele havia de ser o único canhoto no mundo? Não era. Conheceu alguns deles. Livres, criativos, sensíveis. Perturbados. Sim, porque a liberdade e a lucidez requerem uma certa medida de loucura. Como surpreenderam-se mutuamente com a vida!
Um pardal feinho pousou no parapeito da janela, mirou-lhe os olhos e, sem cerimônias, voltou para o mundo largo. Será que volta? Ele mesmo, depois de levantar voo, tentou voltar, mas já era tarde. Lembra-se de como foi difícil reencontrar os pais. As palavras caiam trôpegas e maltrapilhas pelos cantos da boca. Tudo o que ficou foi silêncio. Não volte, passarinho. Voe alto que eu fico feliz se você for forte e livre. Agora que seus pais já haviam descansado seus fardos, escrevia-lhes cartas todos os anos, perfumava-as e depois as queimava. Sabe que é inútil, mas ajuda a cobrir a solidão e a saudade. Mas não chora. Guarda as lágrimas para quando chove. Vai ao jardim banhar-se de chuva e lavar-se por dentro. Fica quieto por uns instantes só sentindo tudo. Ouve suas plantas e pisa a terra descalço. Sempre pega pneumonia depois de uns dias. E melhora. Tem horror de ser enterrado em caixa de concreto. Não. A vizinha já sabe que quando ele morrer quer ser enterrado direto na terra. Assim pode, quem sabe, enfim dar vida a alguma coisa. Certa vez, quis escrever aos pais um pedido de desculpas por querer morrer.Ele que morrera de pequenas mortes todos os dias. E foi se tornando uma estátua de gesso de dentro para fora. A vida toda escorrera-lhe por entre os dedos. Os afetos embrutecidos. O corpo domado. Os amores silenciados. Foi nessa época que os outros canhotos perceberam que ele nunca soube mesmo voar: ele mesmo deixou que depenassem suas asas há muito tempo. Ele havia secado.
Levou a borda fina da xícara de cerâmica um última vez aos lábios meio molhados. A mão trêmula como a de sua tão querida bisavó. Pôs os óculos para ver as horas. Ainda tinha tempo para ouvir uma música na vitrola. Tomou a bengala nas mãos para levantar-se e, num espasmo bendito, pensou que, no lugar onde for enterrado, brotarão gerânios. Vermelhos como o amor que ele nunca conheceu.
Eu me emociono e me inspiro de mais com teus textos, Herley. Miudas delicadezas é o nome perfeito pra esse lugar, pois entrar aqui é sentir-se delicadamente tocado. Lindíssimo.
ResponderExcluirHerley, eu quero ler de novo.
ResponderExcluirAcho que é isso que eu tenho pra lhe dizer: eu quero ler de novo.
Beijo.