Este blog surge a partir do módulo "Arte e Literatura: Humanidades Médicas I" do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. O módulo tem por objetivo explorar, junto com as e os estudantes de graduação em Medicina, outras dimensões da práxis médica que não apenas as competências tecnológicas duras. Para isso, lança mão de recursos pedagógicos vivenciais e audio-visuais, trazendo elementos da Literatura, das Artes Plásticas, do Cinema, bem como das experiências pessoais compartilhadas pelas e pelos estudantes.
Apesar disso, hoje o blog não quer se definir. Aqui encontram-se estranhamentos e aleluias cotidianos de um contínuo tornar-se.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Oração para o novo ano


Ó Deus, livra-me do pensamento-gaiola! Outra coisa não peço, senão isto.
Quero falar pétalas de borboleta. E escrever rastros de caracóis apaixonados.
As conchinhas todas enfeitadas, apenas adivinhadas por quem lê as trilhas brilhantes.
Que eu ouça tuas sístoles com meus poros
e que eu dance a vida na quietude do silêncio, que é teu doce Mistério.
Não, nada quero entender. Quero tão somente chupar o gosto do dia.
Água-viva palpitando no compasso do não-saber que é teu oceano profundo.
Amém.

Corpo: esta coisa entre coisas e além delas...

"Palimpsesto

Nosso corpo fala línguas que ele mesmo desconhece... Em tempos antigos, quando se escrevia em couro, costumava-se apagar o texto a fim de escrever um texto novo. As palavras eram raspadas e a superfície do couro era alisada com o auxílio de preses de elefante. Quando se percebia que nada do antigo texto restava, fazia-se uma nova escrita. E a antiga estava perdida, para sempre... Eles não sabiam, entretanto, que dentro do couro o texto antigo permanecia, invisível. Hoje, graças a técnicas modernas, ele pode ser recuperado. Eram os palimpsestos: couro sobre o qual muitos textos eram escritos. Nossos corpos: palimpsestos..."











(Rubem Alves - Do Universo à Jabuticaba)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Recorte distraído


"-- Você vai ser um pau.

-- Não quero ser um pau.

-- Mas você é um pau diferente. Você é um pau que canta."

(Li furtivamente quando pus os olhos no que me pareceu um script
que alguém lia no ônibus, no fim do dia)

Renda Portuguesa

Quatro e meia da tarde, a luz dourada e turva que, líquida, penetra os espaços pequeninos entre as pétalas das flores amarelas sob as pálidas telhas na varanda traz para mim uma serenidade de livro velho. Confunde-se com as sombras das árvores na grama molhada. Boiam sonhos na memória, e é possível que se veja um rapaz com trajes antigos a tramar uma fuga adolescente com a mocinha da janela. Ela traz os cabelos muito bem amarradinhos a 45 graus da linha das orelhas e deixa um cacho pender ao lado dos olhos, quase de propósito. Ele, alto e magro, tem o nariz comprido e os olhos estreitos, como todo homem. E existe tanta possibilidade nessa tarde perdida Deus sabe quando! É inútil tentar saber o que aconteceu aos jovens, porque a luz das quatro e meia logo dá lugar à noite e à farsa que são os postes e os faróis dos carros. Basta dizer que, naquela tarde, aquilo era a felicidade. E eu, cúmplice, assisti a tudo consternado. Sei guardar segredo. Na mesma hora, uma amiga me confidencia gritos. Guardo-os em potinhos, depois abro as tampas e liberto as borboletas negras com sua dança venenosa. Ainda há certas mariposas que estavam esquecidas sob o criado-mudo, é verdade. Espero a noite chegar plena, para liberá-las, porque estas são minhas, e há que se ter algum cuidado com mariposas. Bichinhos frágeis e terríveis. Alhures, outra amiga querida fica grávida de vida e dá à luz amor. Eu digo "sim!" e danço por dentro. Meu sorriso de fim de tarde é uma oração. Fecho os olhos e, secretamente, canto para Deus. Levinho, levinho.

domingo, 21 de novembro de 2010

A Mulher de Lot

A mulher de Lot, que o seguia, olhou para trás
e transformou-se numa estátua de sal.
Gênesis


"E o homem justo seguiu o enviado de Deus,
alto e brilhante, pelas negras montanhas.
Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:
'Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar

as rubras torres de tua Sodoma natal,
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,
as janelas vazias da casa elavada
onde deste filhos ao homem bem-amado'.
Ela olhou e -- paralisada pela dor mortal --,
seus olhos nada mais puderam ver.
E converteu-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão se enraizaram.

Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?
E, no entanto, meu coração nunca esquecera
quem deu a vida por um único olhar."












(Anna Akhmátova -- Antologia Poética)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Para confessar pecados

Esta será minha penitência por ter passado tanto tempo sem aparecer por aqui sem motivo: confessar alguns pecados. Sim, porque é assim que compartilhamos nossa condição humana. O pecado -- ou melhor, sua confissão -- é, em certa medida, o ponto de partida para que se estabeleça um verdadeiro espaço de interlocução entre os indivíduos que permita um diálogo genuíno, sem heróis nem vilões, posto que o pano de fundo dos relacionamentos -- e aquilo que nos matém unidos -- é a consciência da decadência, não a da glória.

I
Pois bem, eu costumava ler a Veja. Perdoai. Mas é a mais pura verdade. Em defesa de mim, tenho a alegar apenas a ignorância da adolescência. Tinha por volta de meus 16 anos, terceiroanista... O fato é que havia uma foto da Lya Luft em suas colunas que sempre me dava a impressão de que ela estava prestes a falar: "Francamente!". Internalizei-a. Vez por outra ainda me surpreendo franzindo a testa e fazendo cara de Lya Luft.

II
Ter assistido novelas me estragou a cabeça. Comédias-românticas, romances e certos dramas também são culpados. Acuso-os de terem alimentado por tanto tempo essa ideia do amor trágico. Desses que se conduzem por impulsos mágicos, conjurando maravilhosos fantasmas narcísicos. Negação do corpo e da morte.
III
Certos abraços me deixam angustiado e tenho vontade de chorar horas depois sem mais-nem-menos. É que ser afetado me desconserta um pouco. Viver me deixa à flor-da-pele.
IV
Ter conhecido o cinema europeu me salvou um pouco. Adélia Prado também. Querer um amor feinho é também dizer sim à vida, à sua concretude, às suas múltiplas possibilidades, à emancipação de si e do outro. Por falar nisso, também quero dizer aqui que sou a favor das tentativas. Desses passos desajeitados que damos ao tentar nos erguer, ao dizer-nos, ao pronunciar o mundo, ao desejarmos ser. Sou a favor das tentativas de re-escrever-se, de criar linhas de fuga.
V
Escrevo coisas sem sentido, meio que em espasmos. Depois acho tudo muito violento. É como estar nu. A verdade é que crucifico um pouco minha criança interior, e ela, para se vingar, denuncia a minha impotência. E ri com gargalhadas infantis. Os homens, de forma geral, padecem de uma terrível inadequação à realidade desde o momento em que começam a brincar de super-herói, o que nos torna para sempre narcísicos delirantes absolutamente ingênuos. Acreditai. Este é, pois, nosso ridículo: permanecermos crianças. Mesmo aqueles a quem se ordena serem gauches, estes obedecem cegamente. Adélia diz: sou desdobrável. Sendo assim, quando escrevo, o faço caleidoscopicamente, juntando os cacos de minhas limitações distraidamente. Não quero fazer sentido. Quero inventar borboletas que me saiam pelos cabelos. Deixar o menino correr pelo jardim. Não repareis.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Ainda sobre a anemia

"Porque a maior doença que alguém pode experimentar é ter muito cedo tentado estancar intensidades, banir estranhezas e se deixar morrer lentamente. Afinal de contas, Rômulo, você -- como eu -- entende como é quase sempre desconcertante sentir-se invadido pela vida, porque finalmente lhe digo que o que nos espreita é a vida, é dela que temos medo."










(Glória Diógenes, in Você pode me ouvir, doutor?)

sábado, 2 de outubro de 2010

Laudilene sexta à noite

A verdade é que era frágil. Sempre o fora. Havia qualquer coisa no de-dentro de si que sempre esteve perigosamente por um fio. A invisível teia de aranha que separa as imagens trituradas do caleidoscópio. Os silêncios que entrecortam as palavras. Silêncio também é imagem. Sim. Pois, se estamos mergulhados nas palavras desde que nascemos, há que se respirar os silêncios vez por outra. Não é bem assim. Acontece que olhar é querer escutar e falar o mais íntimo e mudo de nós mesmos. Neste caso, era gritar mesmo. Grito vulcânico de peixe abafado. Todo escuridade. Onde estava mesmo? Pois sim, no olhar. Se olhar falasse, talvez dissesse assim com Caio F: "Só se pode encher um vazo até a borda. Nem uma gota a mais." Mirou o chão. O que diziam em torno de si? Não importava. Só o chão. Só o chão. Num diálogo primitivo com sua ancestralidade, o observava agora quase transbordando. Como quando sentia em seu rosto o vento frio e molhado de mar numa noite dessas enquanto penetrava o escuro sob os arcos que faziam as copas das árvores. Mas então já era criança e tudo tinha cheiro de jambo. Bastava pedalar mais rápido e fechar os olhos. Os flashes amarelados de tempo coincidindo sobre si com as lâmpadas dos postes da rua nua. Enfim, um sorriso com janelinhas abertas. Sorrir não é então isso? Abrir janelas? Nem sempre. Só quando se está por transbordar de alegria. Os olhos vivos olhando. O que, meu Deus? Apenas isso: olhando. Agora, entretanto, o que via era os riscos empoeirados entre as cerâmicas do piso do bar. Inspirou profundamente. Ex-pi-ra-ção. Tentou puxar assunto, socializar-se com as demais pessoas do grupo, mas seus olhos eram moscas insuportáveis. Daquelas que, por mais que se espante, insistem em pousar nas mãos muito-brancas-cor-de-mármore, no cabelo cacheado, no nariz afilado, em caminhar sobre aqueles lábios finos e rosados. Inquietos. Desistiu. Andava desistindo consideravelmente esses dias. As gotas fazendo um barulhinho bom. Contagem regressiva para não-caber-mais-em-si de quê. Tudo era perigoso demais. E absolutamente infeliz, desesperançado mesmo. Sim, porque qualquer escolha nessa vida é um amputar-se. Estou exagerando? Talvez. Mas é verdade mesmo assim. O fato é que despediu-se de todos. Janelas abertas em face uma da outra, como espelhos encaixotando-se infinitamente. Estremeceu e sentiu-se nu, recriminado. Afinal, não se deve olhar alguém assim com tanta força. Invadir a vida dos outros de qualquer maneira é crime, e há coisas que se esconde por detrás da janela e que não são da conta de seu ninguém! Uma última risada estalada. Madeira batendo no desnível do parapeito. Seguiu feito agulha a coser aquela trama de gentes, todas cheirosas e enfeitadas para quê. Fez bem. Não teria futuro. E era coisa de olho mesmo, não de coração. Ao longe, a cantora da noite aborrecida queria saber "para onde os clientes haviam ido na noite anterior que estavam tão assim-sem-ânimo?" Não haviam ido a lugar algum. Chama-se anemia existencial. Viver vai nos escoando a vida de-va-gar-zi-nho, e, quando se percebe, se está assim: vivendo o eterno retorno do entre-camas. E foi para onde ele foi. Digo, para a cama. Livrinho de Caio F na cabeceira porque há que se inventar alguma doçura e algum amor possível no mundo, não? Quis transbordar, mas suportou. Sonhou com flor de jambo e vento no cabelo.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Da Ciência e da Medicina também

"Viver é muito perigoso.
Querer o bem com demais força,
de incerto jeito, pode já estar sendo
querer o mal, por principiar.
Esses homens!
Todos puxaram o mundo para si,
para consertar consertado.
Mas cada um só vê e
entende as coisas dum seu modo."


(Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas)

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Sobre a felicidade obrigatória

"Era a morte. Eu escolhi a vida."
(As Horas, Michael Cunningham)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Dos ecos imemoriais

"A voz da poeira líquida
que vem das fontes extintas
está falando.
O orvalho repica
nas folhas e nos reflexos
que há muito não brilham.
As bocas entalhadas na rocha
são cordas tangidas pelo vento."

(Dylan Thomas/ Poemas Reunidos -- 1934 - 1953)

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Das aleluias e das agonias contemporâneas

"Um menino abandonado não chora ininterruptamente,
distrai-se a intervalos
com a formiguinha na areia,
chora,
distrai-se,
chora,
como a humanidade."

(Adélia Prado)


sexta-feira, 30 de julho de 2010

Gostinho de Vida

Tem coisa mais charmosa que tomar um cafezinho à meia luz, enquanto se faz uma leitura gostosa, ou se conversa amenidades com gente querida? Hoje, à tardinha, revestido pelo dourado do sol em seus últimos bocejos do dia, estive em companhia de gente grande que muito admiro e me senti um tantinho assim maior, mais consistente e presente. Ah! os estados de graça são inexplicáveis. Fecho os olhos e agradeço a vocês por existirem, meus amigos.

Sobre tornar-se o que se é

"Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe gostosamente o teu vinho, pois Deus já de antemão se agrada das tuas obras. Em todo tempo sejam alvas as tuas vestes, e jamais falte o óleo sobre a tua cabeça. Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias de tua vida fugaz, os quais Deus te deu debaixo do sol; porque esta é a porção nesta vida pelo trabalho com que te afadigaste debaixo do sol. Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque no além, para onde tu vais, não há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma."
(Livro do Eclesiastes, cap 09)

Mousse de limão



Os pés, cheios de distâncias, realizam sobre o asfalto seu movimento de maré. Caminho ao meio dia para sentir o ardor de viver. E agradeço às últimas árvores que restaram. Nós também temos raízes. Meus pés de argila procuram o seio materno em vão. Freud, Klein, Winnicott já nos explicaram tudo isso... Sim, porque a dança que dançamos é a do fim. E há sempre o asfalto mudo e insosso a nos recalcar de nós mesmos. Paro um instante na calçada verde. As mãos brancas, finas e mais ásperas do que parecem. Penso em tocar as rugas ancestrais de uma ávore mais gentil, brotada da Terra. Encharco-me de humanidade para ouvir seu grito sufocado. Seria capaz de surportar, meu Deus? Ela que pare seus algozes suicidas consternada como uma baleia e enrola-se sobre si mesma para existir. Encaramo-nos mudos por segundos. Chegou a ser minuto? Não sei. Não sabemos mais. Viver é coisa antiga demais para nós. É cheio de tempo. O tempo, nós o cortamos e esprememos e o vendemos aniquilado a ninguém. Quem quer tempo? Duas folhas secas rolam sua musiquinha crocante no chão. Minúsculos esqueletos sonoros. Os operários da construção ao lado da minha interlocutora retomam suas atividades suadas e põem fim ao nosso diálogo silencioso. Isso também é asfalto. Ouço uma cantiga efêmera sobre o entardecer. O xilofone dá um arzinho delicado e frágil à voz da cantora. Atravesso a trama de carros prata-ofuscantes e entro no supermercado. Faço movimentos descartáveis e falo coisas descartáveis.
-- É só isso?
-- Deixa ver: limão, leite condensado e gelatina incolor. É. Só isso mesmo.
-- Já é cadastrado? Não?! Que pena... você ganharia um desconto por trazer a sacolinha...

Fiquei sem desconto mesmo. Prefiro assim: sem sedativos. Um dia desses, ouvi de uma mulher bastante perturbada que estamos todos à beira do vulcão e que as pessoas nem se dão conta... Os últimos homens vivem parvamente suas alegrias obrigatórias e amortecem as dores. Se é assim, eu mesmo farei um mousse de limão e sorrirei meu sorriso de vaga-lume por um triz. Vamos! Voemos entrelaçados e pegajosos, então, até o ponto em que a luz apagar. Até que nada mais haja para ser lembrado. Mousse, azedo, mas tão doce quanto puder ser.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Sobre a vertigem

"Uma adrenalina é quando eu grito."
(Jonas, um garotinho de 7 anos muito vividos)

terça-feira, 29 de junho de 2010

Sobre o Anti-Fascínio

"Se eu fosse jovem como vocês, sabem o que eu faria? Isso daí, ó" Dr. P. apontou-nos um anúncio em papel A3 que, cinza, se confundia com o quadro quase branco na sala de estar reservada aos funcionários do hospital onde estávamos. "Medicina Forense e Legal! Essa é a especialidade do futuro. Isso é o que vai dar dinheiro, viu?" constatou e sentiu que nos havia dado um conselho precioso. E como poderia ser diferente? Ele, um dos médicos mais antigos do serviço e um dos mais queridos pelos funcionários, deveria saber, no mínimo, o que aguarda estes que serão talvez os médicos dos últimos homens. Aliás, sentia ultimamente que esta era a sua missão: alertar os futuros médicos sobre a vida. E quem o saberia fazer melhor? Quem, além dele, teria suportado por tanto tempo trabalhar naquele lugar-sem-Deus sem perder a sanidade? Sim, pois loucura jamais o poderia tocar. Ele, que é imprescindível. Que é único. Vivido. Pois bem, ele é cirurgião e resolve problemas insolúveis para a maioria de seus colegas. Mesmo depois do diabetes e dos divórcios, continua quase firme a trabalhar, a ensinar, a nos aconselhar e a contar-nos suas piadas decrépitas. Ah! a verdade é que está cansado... Com seus quase sessenta anos, quase careca, quase vaidoso -- certamente -- é quase capaz de sentir qualquer coisa e de perceber que, se soubesse que sua vida seria essa contínua mortificação, ao menos teria escolhido um ofício mais cabido. Um com o qual pudesse se identificar. Bom mesmo era ser médico de assassinados. Sim, nada mais seguro do que o devir da medicina cadavérica -- era essa a sua certeza. Mas isso tudo era entrelinha. Aquilo que fica atrás da palavra, quase sempre escapa àquele que a pronuncia. E a todos, não? No caso do Dr. P., o que estava atrás do seu bigode suficientemente bem cuidado era um sorriso. E, atrás do sorriso, a expectativa do olhar. Não, não era bem isso. Havia um olhar pedinte. Talvez houvesse até alguma angústia sufocada. Mas desconfio de que, na maioria do tempo, o Dr. P. não se dê conta daquilo que se passa por trás do seu sorriso de homem de meia idade. É que Dr. P. sempre nos sorri. E nos confidencia seus prazeres. Orgulha-se. Oculta sua miséria. Quem sabe, alguma lucidez o visite certas noites, enquanto bebe os primeiros goles de uísque e ouve um blues, em sua casa de serra, sozinho, antes de as prostitutas chegarem... Ele nos observou pateticamente por uns instantes, e, como fôssemos condescendentes, preparou-se para sair da sala e caminhar entre as cadeiras, os leitos e as paredes do hospital.
Dr. P. é a denúncia de nossa zumbificação. É o nosso não-ser -- tão possível e fácil, meu Deus! Façamos um segundo de silêncio pelo Dr. P., por mim e por você. . Pronto, acho que vi um vaga-lume.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Sobre a entrelinha


"Há sempre um querer-dizer, uma intenção que vai além, ou ao lado, daquilo que foi apreendido na linguagem e em palavras e toca o outro. Uma procura nunca satisfeita da palavra exata -- eis o que determina a vida real e a essência da linguagem"








(Vérité et Méthode; H.-G.
Gadamer)

Ao pássaro da estrada

Voa! É tudo o que quero pra ti: que tu voes mais alto. Porque eu decidi te libertar de mim. Sobe a tua subida, que eu também tenho minhas penas. E o meu voo é para cima e para dentro na medida e na largura da liberdade. O meu voar é também um mergulho que ninguém alcança, porque é meu segredo. É minha vertiginosa dança do devir. Minha risada larga.
Se algum dia te vir novamente, quero te ver mais alto, mais profundo e mais mordaz, cher oiseau. Os pássaros são mordazes. Com sua liberdade feroz, cortam o céu e comem coisas vivas.
Quanto a ti, realiza a tua potência, porque, assim, eu te sorrirei com os olhos. Com Ternura.

domingo, 23 de maio de 2010

Canções da gruta e do desfiladeiro

Sem dúvida, ouvir Alela Diane é uma experiência marítima. Sim. Em seus dois trabalhos, a musicalidade da cantora nos transporta e nos convida a vivenciar o mar a partir de diferentes perspectivas, tendo como fios de tecitura os ecos imemoriais nas vozes das ondas. O mar é cantado em The Pirate's Gospel (2006) como que da fria e secreta gruta à noite. Com uma atmosfera por vezes fantasmagórica, por outras intimista -- embora sempre com uma delicadeza sui generis -- Alela nos apresenta o cheiro salgado da água noturna do século XV, que atravessa o tempo e nos constitui a partir do encontro com o mar mais imediato. É a sensação de estar completamente envolvido pelas águas, no abraço perigoso, mas enigmático e, por isso mesmo vivo, das marés. Alela nos fala sobre sua infância, sobre família e sobre o cuidado com um mundo em cujos limites pesam nossas mãos. O verde fantasma do pirata nos conta suas histórias tristes e bonitas, enquanto dança em volta da fogueira e se dá conta de sua ambição avarenta.
Estabelecendo uma relação mais etérea e quem sabe nostálgica com o mar, em To Be Still (2009), a cantora nos leva a um abismo frente ao oceano para que assistamos juntos ao pôr do sol. Se no trabalho anterior suas canções nos tocavam por nos remeter a uma ancestralidade quase que intuída, neste esses ecos se ampliam de forma tal que só é possível sentir perplexidade ao escutar suas melodias. Tudo nessas canções é grandioso e solene. Não se trata mais do mar do pirata. É, antes, o oceano sublime, intangível e inexplicável que nos emudece. Não é possível tocá-lo, mas ele se dá a ver no azul ancestral dos olhos de sua mãe. Todas as músicas são uma elevação de qualquer coisa em nós, finalizando com a cortante e delicadíssima Lady Divine.
Ouvir Alela Diane é um encontro de si e, ao mesmo tempo, do passado remoto e diáfano em nós. Sua voz é encantada.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Ainda sobre a leveza

É que talvez as coisas tenham ganhado um tom solene demais por aqui... Não, essa não era a intenção. A idéia é apenas sentarmo-nos a uma mesinha para falarmos o que surgir, enquanto se toma café e se escuta, quem sabe, The Doors, ou mesmo Billie Holiday. No intervalo entre duas coisas. Às 16h. Sim, trata-se de viver a intensidade do hiato. E de sorrir, enfim - por que não?


"- Did you know he thought the world as a huge resonating box?
- What a beautiful idea, Jack!"
(Coffee and Cigarettes, 2003)

Sobre a leveza

"E, enfim, Matilda descobriu que a vida podia ser divertida"

(Matilda, 1996, USA)

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O Devir Humanidade da Medicina

"Ya conocéis mi historia: no hay ninguno de vosotros que no la haya repetido veinte veces al acabar la copiosa comida, acompañada del bostezo de las sirvientas, ni una de vuestras mujeres que no haya soñado ser alguna vez Clitemnestra. Vuestros pensamientos criminales, vuestras ansias inconfesadas ruedan por los escalones y vienen a derramarse en mí, de suerte que una especie de horrible vaivén hace de vosotros mi conciencia y de mí vuestro grito." (Yourcenar, M. Clitemnestra o el crimen)

A Medicina, entendida como ciência positiva do corpo, é uma fantasmagoria. Sua única salvação possível é incorporar-se à vida. Nesse sentido, se eu disser que o máximo que a Ciência Médica pode querer é ser uma interpretação possível do real, penso não ser mal compreendido. Entendida como vontade de verdade, uma Medicina tal que não se compreenda como produção cultural, portanto humana, corre o risco de descolar-se daquilo mesmo que investiga e de se tornar absurda. Dessa forma, resta a ela se esforçar para olhar o corpo na maior amplitude de sua espacialidade possível. Isto é, o corpo desejante, empoderado, torturado, decadente, sublime, simbólico. O corpo que vive. Humano. A Medicina enquanto ciência -- se é que é possível -- transfixa com olhar não somente o corpo apolíneo de Cassandra, mas o dionisíaco corpo de Clitemnestra. Esse olhar só pode ser interpretante.
Só pode ser um olhar-palavra. Linguagem. Humanidade!

Isso não quer ser uma tese, mas não deixo de me empolgar com a VII Semana de Humanidades UFC/UECE que hoje se encerrou. Pergunto-me se, algum dia, será lícito pensarmos em uma Semana de Humanidades da Saúde. Espero que sim. Enquanto isso, resistamos à mediocridade e à incultura. Isso, caros e caras, é uma luta por uma prática médica enfim lúcida.

domingo, 25 de abril de 2010

Onde vivem os monstros

O monstro é o nosso ponto de incomunicabilidade. É aquilo em nós que só pode se manifestar através da explosão. Aquilo que grita, que dança, que corre, que excede, que despreza a razão. O monstro é Dionísio.
No fascinante e ousado "Onde Vivem os Monstros" de Spike Jonze, somos interrogados acerca do que temos feito da monstruosidade. Até aqui, nada de muito novo, uma vez que ela marca sua presença em nossas histórias desde muito cedo -- lembremo-nos dos contos de fada e dos filmes de horror. No entanto, a perspectiva em que o filme nos faz observar o que seja o monstro difere em muito do não-humano, ou anti-humano, terrível e ameaçador, que deve ser recalcado, ou projetado no outro e destruído para que possamos afirmar nossa própria humanidade. Ele é, na verdade, aquilo mesmo que nos constitui indivíduos. E isso já é sugerido pelo subtítulo da obra: "Há um em todos nós". A função do monstro não é nos mostrar o que não somos, mas sim denunciar aquilo que não podemos. A jornada empreendida por Max -- garotinho protagonista da história, que, ao fugir de casa, encontra seus monstros, sendo proclamado rei ao prometer-lhes que nunca ficariam tristes e que sempre dormiriam amontoados -- não é outra coisa, senão o caminho da percepção da nossa solidão irremediável e da impossibilidade de nossa onipotência. Nesse sentido, o lugar onde vivem os monstros não é o inóspito, o estranho e ameaçador, mas o lugar das fantasias, do desejo sem mediações. É o coração. Ao admitir para si mesmo e para os monstros que não é rei, mas um garoto comum, Max se dá conta do outro e de si-no-mundo. Aí está o encanto dessa delicada história. A partida não é a destruição do monstro, com o triunfo do humano, mas o adeus dolorido que demarca o adultecer. Resta então a Max cumprir sua última promessa: a de contar coisas boas acerca dos habitantes da ilha.
Com uma linda trilha sonora, que nos faz lembrar o anti-folk de Juno, "Where the Wild Things Are" é uma bela metáfora sobre crescimento e sobre família. Um filminho de encher o coração.

sexta-feira, 12 de março de 2010

"Quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele
soprando sulcos na pele soprando sulcos?
o tempo andou riscando meu rosto
com uma navalha fina
sem raiva nem rancor
o tempo riscou meu rosto
com calma
(eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença)

Acho que a vida anda passando a mão em mim
a vida anda passando a mão em mim
acho que a vida anda passando
a vida anda passando
acho que a vida anda
a vida anda em mim
acho que há vida em mim
a vida em mim anda passando
acho que a vida anda passando a mão em mim"




(Viviane Mosé; do livro
Pensamentos do Chão, poemas em prosa e verso
)

quinta-feira, 11 de março de 2010

Presentinho de hoje

Um passarinho hoje me deu um presente assim:

"Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova,
O gesso muito branco, as linhas muito puras,
Mal sugeria imagem de vida -- embora a figura chorasse --
Há muitos anos tenho-a comigo
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja
Os meus olhoa, de tanto a olharem, impregnaram-na da minha humanidade irônica de físico
Um dia, mão estúpida inadvertidamente a derrubou e partiu
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos, recompus a figurinha que chorava
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente da pátina

Hoje este gessozinho comercial
é tocante e vive
E me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu."
(O Gesso, Manuel Bandeira)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Sobre a ordem


"Se existe alguma ordem, para mim, é a da vertigem."



(Marcia Tiburi)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A Intersubjetividade e o Nada

Qual o limite da possibilidade de um olhar objetivo em uma relação terapêutica? O filme italiano "O Quarto do Filho" não trata especificamente disso, mas, de forma um tanto despretensiosa, nos leva a tal questionamento. Conduzido de maneira sincera e absurdamente delicada, o filme nos conta a história de um psicanalista e de sua família que têm seu relacionamento e certezas postos em cheque após uma grande perda. A angústia do vazio, talvez o tema central da obra, é explorada através dos silêncios presentes ao longo de toda história, sobretudo os do psicanalista, em suas longas corridas e na belíssima cena em que, mudo, em um parque de diversões, vivencia corporalmente a vertigem que sente de forma abstrata, ou ainda na secreta e adivinhada compreensão de si que a família intui à beira mar, na última cena. A música tema "By this River" ajuda a completar essa sensação de queda e de perda de si no nada.
A questão para nós é que não há no protagonista, ou há de forma muito sutil, uma demarcação daquilo que seja o terapeuta e daquilo que são seus outros papéis sociais. E, na mesma medida em que isso pode ser perigoso em uma relação terapêutica, é inevitável. Há uma intersubjetividade clara nessas relações, bem como há uma implicação intrinsecamente subjetiva na escolha profissional, na escolha de um objeto de conhecimento, de desejo, etc. Penso que o que La Stanza del Figlio nos comunica é que, só é possível estar sendo, enquanto se é, por mais indesejado que isso possa ser.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Sobre o adoecer

"A maioria das doenças que as pessoas têm
São poemas presos.
Abscessos, tumores, nódulos, pedras são palavras calcificadas,
Poemas sem vazão.
Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado.
Prisão de ventre poderia um dia ter sido poema.
Mas não.
Pessoas às vezes adoecem da razão
De gostar de palavra presa.
Palavra boa é palavra líquida
Escorrendo em estado de lágrima

Lágrima é dor derretida.
Dor endurecida é tumor.
Lágrima é alegria derretida.
Alegria endurecida é tumor.
Lágrima é raiva derretida.
Raiva endurecida é tumor.
Lágrima é pessoa derretida.
Pessoa endurecida é tumor.
Tempo endurecido é tumor.
Tempo derretido é poema"

(Viviane Mosé

Receita para arrancar poemas presos)

Postagem clichê

Acho clichê essas postagens de começo de ano que falam exatamente sobre isso, sobre expectativas e promessas autodirigidas. Mas me parece inevitável, desta única vez, fazer uma espécie de ruptura, ou de demarcação de um outro momento. O fato é que, como se vê, decidi continuar o blog e, como sei que ao menos duas pessoas dão uma passadinha por aqui, explico-me. Não se trata de uma ruptura séria, mas de uma desobrigação -- existe? -- com a disciplina de Humanidades Médicas I, uma vez que esta já acabou. No entanto, penso que o conteúdo que aqui será postado, continuará perpassando aqueles assuntos, uma vez que dizem tanto a respeito de minha caminhada, não só acadêmica, mas pessoal.
No mais, permitam-me os clichês ao menos nesse começo de ano... por exemplo: deixem-me desejar coisas para este ano. Que 2010 seja vivido! Construído, sentido e às vezes -- por que não? -- distraído. Que tenha gostos, cheiros, movimentos e defeitos. Que seja leve, que seja doce e vermelho. Que não continue sempre como 2009. Que seja melhor. E pior também. Livre. Sim!