Este blog surge a partir do módulo "Arte e Literatura: Humanidades Médicas I" do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. O módulo tem por objetivo explorar, junto com as e os estudantes de graduação em Medicina, outras dimensões da práxis médica que não apenas as competências tecnológicas duras. Para isso, lança mão de recursos pedagógicos vivenciais e audio-visuais, trazendo elementos da Literatura, das Artes Plásticas, do Cinema, bem como das experiências pessoais compartilhadas pelas e pelos estudantes.
Apesar disso, hoje o blog não quer se definir. Aqui encontram-se estranhamentos e aleluias cotidianos de um contínuo tornar-se.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Renda Portuguesa

Quatro e meia da tarde, a luz dourada e turva que, líquida, penetra os espaços pequeninos entre as pétalas das flores amarelas sob as pálidas telhas na varanda traz para mim uma serenidade de livro velho. Confunde-se com as sombras das árvores na grama molhada. Boiam sonhos na memória, e é possível que se veja um rapaz com trajes antigos a tramar uma fuga adolescente com a mocinha da janela. Ela traz os cabelos muito bem amarradinhos a 45 graus da linha das orelhas e deixa um cacho pender ao lado dos olhos, quase de propósito. Ele, alto e magro, tem o nariz comprido e os olhos estreitos, como todo homem. E existe tanta possibilidade nessa tarde perdida Deus sabe quando! É inútil tentar saber o que aconteceu aos jovens, porque a luz das quatro e meia logo dá lugar à noite e à farsa que são os postes e os faróis dos carros. Basta dizer que, naquela tarde, aquilo era a felicidade. E eu, cúmplice, assisti a tudo consternado. Sei guardar segredo. Na mesma hora, uma amiga me confidencia gritos. Guardo-os em potinhos, depois abro as tampas e liberto as borboletas negras com sua dança venenosa. Ainda há certas mariposas que estavam esquecidas sob o criado-mudo, é verdade. Espero a noite chegar plena, para liberá-las, porque estas são minhas, e há que se ter algum cuidado com mariposas. Bichinhos frágeis e terríveis. Alhures, outra amiga querida fica grávida de vida e dá à luz amor. Eu digo "sim!" e danço por dentro. Meu sorriso de fim de tarde é uma oração. Fecho os olhos e, secretamente, canto para Deus. Levinho, levinho.

4 comentários:

  1. Sabe, a gente vive sempre perto de algum lugar.
    O lugar seguinte, que tanto se idealiza, será o lugar de perto tão logo se chegue nele...
    Aqui pode ser bom também, assim como acreditar não faz mal. Coisas que aprendi este ano. :)

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  2. E você tem toda a razão, Jay. E a emoção tb =]
    Tem um fado português que canta assim:

    "O tempo vai se passando e a gente vai se iludindo
    Hora rindo, hora chorando
    Hora chorando, hora rindo
    Meu Deus! como o tempo passa!
    Dizemos de quando em quando...
    Afinal, o tempo fica,
    e a gente é que vai passando."

    É no instante que se vive. Ou melhor, para ser bergsoniano, tudo é duração.

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  3. E agora eu lembrei desse poema, do Vicente de Carvalho...

    Velho Tema I

    Só a leve esperança, em toda a vida,
    Disfarça a pena de viver, mais nada;
    Nem é mais a existência, resumida,
    Que uma grande esperança malograda.

    O eterno sonho da alma desterrada
    Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
    É uma hora feliz, sempre adiada
    E que não chega nunca em toda a vida.

    Essa felicidade que supomos,
    Árvore milagrosa que sonhamos
    Toda arreada de dourados pomos,

    Existe, sim: mas nós não a alcançamos
    Porque está sempre apenas onde a pomos
    E nunca a pomos onde nós estamos.

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