Este blog surge a partir do módulo "Arte e Literatura: Humanidades Médicas I" do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. O módulo tem por objetivo explorar, junto com as e os estudantes de graduação em Medicina, outras dimensões da práxis médica que não apenas as competências tecnológicas duras. Para isso, lança mão de recursos pedagógicos vivenciais e audio-visuais, trazendo elementos da Literatura, das Artes Plásticas, do Cinema, bem como das experiências pessoais compartilhadas pelas e pelos estudantes.
Apesar disso, hoje o blog não quer se definir. Aqui encontram-se estranhamentos e aleluias cotidianos de um contínuo tornar-se.

sábado, 4 de junho de 2011

Narrativas do silêncio - Parte II - O Fundamento


Um pé seguia o outro apenas por hábito, calçados em quadriculado roxo sobre o fundo branco. Ela, no entanto, era toda imobilidade. Estava certa de que continuava exatamente naquele ponto a exatos cinco centímetros da rachadura na calçada de onde brotavam plantinhas vivas e teimosas. Ainda podia sentir a pressão da lâmina enferrujada e fria da faca contra seu ventre. A truculência do assaltante. Seu calor sujo. A leveza de uma perda. O sol do meio-dia abrindo caminho por entre os cabelos pretos, no meio da cabeça. Era meio-dia, meu Deus! Nem gritar gritou. Era tudo tão absurdo e óbvio... Não, nada havia de muito valor no que lhe fora tomado, exceto o celular com a discografia de The Smiths. Tomou-lhe a mochila das costas e embrenhou-se pelas ruelas labirínticas depois da casa de muro amarelo pichado. Ela ficou ali. Toda perplexidade. Olhou para o céu -- o que se espera de uma garota assaltada sob o calor mais pleno do sol? Havia uma nuvem em forma de fígado e o céu muito azul. E se aquilo tivesse sido a última coisa a ver na vida? Se ele tivesse... Fechou os olhos para sentir a dor. A nuvem partiu-se feito um algodão de que se arranca um pedaço.
A moça parou embaixo de uma árvore. Não faltava muito para chegar a casa. Só Deus sabe como havia chegado tão longe sem notar. Tudo em que pensava era a imagem do horror: o sangue nutritivo e hepático encharcando as plantinhas na calçada quente do sol. E ela, mais branca, mais branca, mais branca. Tudo era tão cru e banal. Todos os dias, milhares de jovens morrem em pleno dia, abertos para o mundo, com o sangue se esvaindo sem esperança. Sentiu náusea. Por um instante, ela fora todos eles. A alma dividida em quem-sabe-quantas. Mil histórias de vida e de morte eclodiam vertiginosas atrás de seus olhos. Teve de apoiar-se no tronco da árvore para não cair no abismo. Se partisse, ninguém poderia mais ajudá-la. Ofegava feito uma parturiente.
Uma brisa redentora e sábia soprou mansinha, arrastando folhas secas e areia pelos ladrilhos do meio-fio em desalinho. Resgatada que fora do transe, respirava agora mais tranquila. O suor na testa e no queixo parecia gotículas de orvalho. Não havia se encontrado com sua morte. Tudo agora tinha uma outra clareza. E o ar que a todos envolve nunca fora tão cristalino. Sentada no meio-fio embaixo da árvore, olhou ao redor e soube: estava só. Não pôde morrer a morte de ninguém, e ninguém morreria a sua.
Misteriosa e serena, como quem sabe das coisas da vida, atirou para trás os cachos que pendiam sobre os ombros e ergueu-se com uma força trêmula, mas decidida. Em direção a casa, era ela quem caminhava.

2 comentários:

  1. sabe, viver é bom, herley. nem que seja só pra ver os outros, assim, se movimentando no mundo... indo fazer compras, morrendo de paixão, chorando... fazer essas coisas também.

    ah, e só pra saber que os cachos são meus. :)

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  2. Sim, este texto é de e para Jay.

    A vida é bonita sim, e ninguém pode vivê-la em nosso lugar ;]

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