Este blog surge a partir do módulo "Arte e Literatura: Humanidades Médicas I" do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. O módulo tem por objetivo explorar, junto com as e os estudantes de graduação em Medicina, outras dimensões da práxis médica que não apenas as competências tecnológicas duras. Para isso, lança mão de recursos pedagógicos vivenciais e audio-visuais, trazendo elementos da Literatura, das Artes Plásticas, do Cinema, bem como das experiências pessoais compartilhadas pelas e pelos estudantes.
Apesar disso, hoje o blog não quer se definir. Aqui encontram-se estranhamentos e aleluias cotidianos de um contínuo tornar-se.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Admissão na enfermaria


-- Dona Rita, o que traz a senhora até aqui?
-- Não sei, meu filho.
-- Tudo bem. O que é que a senhora sente?
-- Saudade.


Eu também.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Para não emudecer, ou epílogo de uma revolta


A boca seca, a voz rouca, abandonada de poesia.
Escrevo agora aos tropeções
joelhos sangrando.
Para lembrar que gosto tem
dizer.
Eu, que sempre silencio,
que me esgueiro e me esvaio entre os dedos.
Permaneço imóvel
Com um "sim" sufocado entre as mãos.
E a sede que nunca passa.
Que nunca reivindica.
Que se acostumou a não ter o que beber.
Recusa o copo que se oferece.
Sobressaltos.
Aceitar a sede me ressequiu até o sonho.

domingo, 9 de setembro de 2012

Às 15 horas



Ai! Violetinha morreu.
Não foi o gavião quem matou.
Ela lhe punha medo 
com seu vestido todo branco e roxo
com sua vozinha tão bonita
com seu cheiro de flor doída
suas danças.
O que aconteceu foi nada.
Um veio vazio foi se abrindo devagarzinho
bem no mais escondido de Violetinha.
Fez ela secar de dentro pra fora.
Murchou.
O Nada sentou-se e comeu os poemas.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Inexpressivo


Todos esses ícones que ostento
Esses filmes delicados
Esses livros profundos
Essas músicas belas e estranhas
Esses versinhos sem arte
Não passam de um grito ao avesso.
Ausência.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Fragmentos brutos para ser inútil


I.
Na escuridade aberta da madrugada, a lua branda me noturna.
Meu coração, nessas ocasiões, bruxuleia.

II.
Ao alçar da noite, São Paulo floresce feito um braseiro.

III.
Meu pai represou bondades. 
Gota-a-gota.
Outro dia, escorreu alegria líquida.
Brilhos.

IV.
Minha mãe tem olho de menininha.
Aponta o mundo e diz: olha! 
E tem gargalhadas de cheiros.
A folha seca de inverno não entendeu coisa alguma. Caiu dura, dura.

V.
De repente, compreendi com a pele uma confissão muda que se encontrava atravessada por tudo naquele lugar. Nos olhos das pessoas deitadas no grama, na conversa dos adolescentes embriagados de inflamações vitais, na mulher musgosa que tricotava no metrô. Foi assim: pendia de um mastro metálico que gritava de luz  uma longa e lenhosa trança de bronze que enraizou-se no chão, toda parada. A corda arvorecida era. Envolveu-me um frio silencioso.

VI.
Do alto das nuvens, olhando-se para o chão, veem-se andanças de caramujo.

VII.
Exercito minha miopia para ver melhor pimentinhas-rosa, broches, esqueletos de folhas e resto de cigarro jogado na vida. Tenho admiração por grãos de areia.

...

domingo, 10 de junho de 2012

Intervalo Doloroso

"[...] Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro.
A minha vida é como se me batessem com ela."











(Bernardo Soares em "O Livro do Desassossego")

domingo, 3 de junho de 2012

Domingo

"... Talvez porque agora você já não esteja sofrendo muito, mas sofrendo bem: é uma diferença bem importante, para a qual o Mário sempre me chamava a atenção. A gente sofre muito: o que é preciso é sofrer bem, com discernimento, com classe, com serenidade de quem já é iniciado no sofrimento. Não para tirar dele uma compensação, mas um reflexo."












(Fernando Sabino para Clarice L. em set/1946)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

"Ultimamente, tem passado muitos anos."









(Rubem Braga)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Tísicos

"Ao se pautar na identidade e na unidade subjetiva, a racionalidade isolou o homem em si mesmo e o fez acreditar, especialmente a partir da modernidade, que ele era princípio de suas próprias ações; distante do mundo e de suas infinitas conexões, sem o alimento explosivo da exterioridade com seus conflitos, o homem, fraco, sem vida, passou a querer alimentar-se de si mesmo, a partir das avaliações de sua própria razão. Uma cabeça obesa é o que nos restou como herança, e uma vida idealizada arrastada por um corpo raquítico."












(Viviane Mosé -- O Homem que Sabe, p.133)

sábado, 21 de janeiro de 2012

"It", ou poema sobre o gosto da vida, ou ainda, Borboleta-chão


"A rosa reteve Pedro. E a mão reteve a música como paisagem de água na retina.
Era noite no bairro do Flamengo. As pensões de estudantes dormiam nas transversais.
Pedro mergulhado em trevas, no quarto, pensa no rouxinol e na bomba atômica.
As coisas mais importantes lhe aconteciam no escuro, como a surpresa de uma flor desabrochada à noite.
Pedro recebe uma brisa no rosto e se olha, inundado de solidão. Se chorasse poderia dormir depois. Prefere andar.
Pedro carrega a beleza como um prédio em ruínas. Desce as escadas e ganha a rua.
Pedro anda tendo temores esquisitos. Por exemplo: que desapareçam os fracos da face da terra e restem apenas pessoas blindadas de sol.
Teme que desapareçam as criaturas roladas dos abismos de Deus, com seus andrajos, com suas cicatrizes.
Pensou em plantar uma árvore. Em pensamento viu-se desmembrado, seu corpo espalhado nos pedaços de um espelho.
Entrou numa pequena rua. Viu pássaros roubando suicidas. Meninos carregando escadas. Respirou um odor de mofo e rosas velhas.
Estava bem longe agora de seu quarto pobre. Seu paletó estaria dependurado no cabide. Esmeralda, a mulata, se surpreenderia de não encontrá-lo àquela hora.
Pedro começa a esfregar os olhos para espantar Esmeralda; mas ela vinha de flancos nua rolar na aresta dos desejos.
Vinha de chapéu de breu e sonos... Distraiu-se afinal vendo os azulejos roídos pelos peixes do Ministério da Educação.
Pedro ficou parado. Depois entrou no Frege, atraído por um samba. Viu lá dentro um negro sentado com uma clarineta fincada no rosto!
O negro atropelava as pessoas com as suas queixas que escorriam pelas ruas como água. Pedro foi saqueado pela angústia. Cuspiu e retirou-se.
No largo, entre pássaros, acalmou-se. Uma funda sensação de pertencer às coisas mudas, como a folha que pertence à árvore, invadiu-o.
Doce pélago! Pedro saiu leve para junto do mar. Coral e flor de caos ia colher -- entre baixios sangrentos.
Seu era o mundo. Dormiu entre pedras. O dia amanheceu em suas mãos.
Pedro entregou-se ao dia, como ao seu musgo se entrega o verde.
Pureza de ruínas nos olhos de Pedro! Estava sujo e coberto de lírios.
Às doze horas Pedro regressou ao quarto. Debaixo da escada um homem dormia como um peixe: a boca descampada úmida e serena. Subiu.
Pedro deitou-se, pensando... A inércia me devora, enraíza-se em meu corpo, como líquenes na pedra -- se fico deitado.
Sentia fluir de seus ossos a inércia e brotar de seus dedos, como cardos, o nojo.
Preciso caminhar. Pedro se levanta e vai à janela. Lá fora, bem rente ao muro encardido, uma pereira florida...
Pedro quer nascer do chão. Pedro acha que precisa florir até a altura de uma janela. Oferecer-se ao luar... e...
Ó propício frio das sombras! Entra Esmeralda autêntica com sol nas carnes e nas palavras. Pedro retorce, quebra Esmeralda nos braços, baba-a toda e a engole.
Agora Pedro vai jiboiar nas ruas de novo. Pedro é louco. Arrasta-se pelos becos com sua porcaria na alma.
Engole sua anulação como água. O nojo lhe cresce como um braço podre, mirrado. Um braço podre saindo das costas...
Pedro engole a maçã do caos. Vai trôpego deitar-se nas pedras. Esmeralda tritura-o agora.
Tudo que há de noturno está entranhado nas roupas de Pedro. Bebe goles de treva. Liberdade que se evola de ti, no escuro, Pedro! Não percebe.
Cogumelos brotavam de seu ventre, e ocasos. Calangos vinham lamber os seus pés e mascar suas roupas os bois.
Pedro se aproximara das coisas. Para dormir com elas. Pedro deitou-se entre objetos. A terra comia seu abdômen.
A terra cheia de poros, fermentada de raízes, rosas podres, bichos corrompidos, penas de pássaros, folhas e pedras -- o atraíam.
Pedro era um barro ofegante. Como um fruto peco, deixou sua boca no chão, imóvel, aberta.
Tinha de recostá-la na terra e haurir, das raízes intumescidas, seiva.
Pedro sabia: todo aquele que não bebe água no solo, secará como cana cortada no pé. Ficou deitado.
Pedro estava só. Deixava-se completamente às coisas, recebendo suas emanações físicas.
Pedro se encostava nas coisas, afagava-as como se elas fossem criaturas íntimas. Pedro era reconstruído.
Agora Pedro ressurge. Vem botando o pescoço para o sol. Despegando-se da escuridão, pesadamente, como um bêbado gordo, e aos pedaços, estraçalhado...
Pedro vem tateando na luz, subindo nas bordas do poço, soltando de sua casca o moliço... Deixa pedaços dele no escuro.
Pedro entra em seu quarto. Está perfeito e pobre. Poderemos sequer fazer uma ideia de que resultará do encontro de um homem com o nojo?
Agora Pedro está dormindo."

(Encontro de Pedro com o nojo -- Manoel de Barros, Poesia completa)