Este blog surge a partir do módulo "Arte e Literatura: Humanidades Médicas I" do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. O módulo tem por objetivo explorar, junto com as e os estudantes de graduação em Medicina, outras dimensões da práxis médica que não apenas as competências tecnológicas duras. Para isso, lança mão de recursos pedagógicos vivenciais e audio-visuais, trazendo elementos da Literatura, das Artes Plásticas, do Cinema, bem como das experiências pessoais compartilhadas pelas e pelos estudantes.
Apesar disso, hoje o blog não quer se definir. Aqui encontram-se estranhamentos e aleluias cotidianos de um contínuo tornar-se.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Ainda sobre a anemia

"Porque a maior doença que alguém pode experimentar é ter muito cedo tentado estancar intensidades, banir estranhezas e se deixar morrer lentamente. Afinal de contas, Rômulo, você -- como eu -- entende como é quase sempre desconcertante sentir-se invadido pela vida, porque finalmente lhe digo que o que nos espreita é a vida, é dela que temos medo."










(Glória Diógenes, in Você pode me ouvir, doutor?)

sábado, 2 de outubro de 2010

Laudilene sexta à noite

A verdade é que era frágil. Sempre o fora. Havia qualquer coisa no de-dentro de si que sempre esteve perigosamente por um fio. A invisível teia de aranha que separa as imagens trituradas do caleidoscópio. Os silêncios que entrecortam as palavras. Silêncio também é imagem. Sim. Pois, se estamos mergulhados nas palavras desde que nascemos, há que se respirar os silêncios vez por outra. Não é bem assim. Acontece que olhar é querer escutar e falar o mais íntimo e mudo de nós mesmos. Neste caso, era gritar mesmo. Grito vulcânico de peixe abafado. Todo escuridade. Onde estava mesmo? Pois sim, no olhar. Se olhar falasse, talvez dissesse assim com Caio F: "Só se pode encher um vazo até a borda. Nem uma gota a mais." Mirou o chão. O que diziam em torno de si? Não importava. Só o chão. Só o chão. Num diálogo primitivo com sua ancestralidade, o observava agora quase transbordando. Como quando sentia em seu rosto o vento frio e molhado de mar numa noite dessas enquanto penetrava o escuro sob os arcos que faziam as copas das árvores. Mas então já era criança e tudo tinha cheiro de jambo. Bastava pedalar mais rápido e fechar os olhos. Os flashes amarelados de tempo coincidindo sobre si com as lâmpadas dos postes da rua nua. Enfim, um sorriso com janelinhas abertas. Sorrir não é então isso? Abrir janelas? Nem sempre. Só quando se está por transbordar de alegria. Os olhos vivos olhando. O que, meu Deus? Apenas isso: olhando. Agora, entretanto, o que via era os riscos empoeirados entre as cerâmicas do piso do bar. Inspirou profundamente. Ex-pi-ra-ção. Tentou puxar assunto, socializar-se com as demais pessoas do grupo, mas seus olhos eram moscas insuportáveis. Daquelas que, por mais que se espante, insistem em pousar nas mãos muito-brancas-cor-de-mármore, no cabelo cacheado, no nariz afilado, em caminhar sobre aqueles lábios finos e rosados. Inquietos. Desistiu. Andava desistindo consideravelmente esses dias. As gotas fazendo um barulhinho bom. Contagem regressiva para não-caber-mais-em-si de quê. Tudo era perigoso demais. E absolutamente infeliz, desesperançado mesmo. Sim, porque qualquer escolha nessa vida é um amputar-se. Estou exagerando? Talvez. Mas é verdade mesmo assim. O fato é que despediu-se de todos. Janelas abertas em face uma da outra, como espelhos encaixotando-se infinitamente. Estremeceu e sentiu-se nu, recriminado. Afinal, não se deve olhar alguém assim com tanta força. Invadir a vida dos outros de qualquer maneira é crime, e há coisas que se esconde por detrás da janela e que não são da conta de seu ninguém! Uma última risada estalada. Madeira batendo no desnível do parapeito. Seguiu feito agulha a coser aquela trama de gentes, todas cheirosas e enfeitadas para quê. Fez bem. Não teria futuro. E era coisa de olho mesmo, não de coração. Ao longe, a cantora da noite aborrecida queria saber "para onde os clientes haviam ido na noite anterior que estavam tão assim-sem-ânimo?" Não haviam ido a lugar algum. Chama-se anemia existencial. Viver vai nos escoando a vida de-va-gar-zi-nho, e, quando se percebe, se está assim: vivendo o eterno retorno do entre-camas. E foi para onde ele foi. Digo, para a cama. Livrinho de Caio F na cabeceira porque há que se inventar alguma doçura e algum amor possível no mundo, não? Quis transbordar, mas suportou. Sonhou com flor de jambo e vento no cabelo.