"Se eu fosse jovem como vocês, sabem o que eu faria? Isso daí, ó" Dr. P. apontou-nos um anúncio em papel A3 que, cinza, se confundia com o quadro quase branco na sala de estar reservada aos funcionários do hospital onde estávamos. "Medicina Forense e Legal! Essa é a especialidade do futuro. Isso é o que vai dar dinheiro, viu?" constatou e sentiu que nos havia dado um conselho precioso. E como poderia ser diferente? Ele, um dos médicos mais antigos do serviço e um dos mais queridos pelos funcionários, deveria saber, no mínimo, o que aguarda estes que serão talvez os médicos dos últimos homens. Aliás, sentia ultimamente que esta era a sua missão: alertar os futuros médicos sobre a vida. E quem o saberia fazer melhor? Quem, além dele, teria suportado por tanto tempo trabalhar naquele lugar-sem-Deus sem perder a sanidade? Sim, pois loucura jamais o poderia tocar. Ele, que é imprescindível. Que é único. Vivido. Pois bem, ele é cirurgião e resolve problemas insolúveis para a maioria de seus colegas. Mesmo depois do diabetes e dos divórcios, continua quase firme a trabalhar, a ensinar, a nos aconselhar e a contar-nos suas piadas decrépitas. Ah! a verdade é que está cansado... Com seus quase sessenta anos, quase careca, quase vaidoso -- certamente -- é quase capaz de sentir qualquer coisa e de perceber que, se soubesse que sua vida seria essa contínua mortificação, ao menos teria escolhido um ofício mais cabido. Um com o qual pudesse se identificar. Bom mesmo era ser médico de assassinados. Sim, nada mais seguro do que o devir da medicina cadavérica -- era essa a sua certeza. Mas isso tudo era entrelinha. Aquilo que fica atrás da palavra, quase sempre escapa àquele que a pronuncia. E a todos, não? No caso do Dr. P., o que estava atrás do seu bigode suficientemente bem cuidado era um sorriso. E, atrás do sorriso, a expectativa do olhar. Não, não era bem isso. Havia um olhar pedinte. Talvez houvesse até alguma angústia sufocada. Mas desconfio de que, na maioria do tempo, o Dr. P. não se dê conta daquilo que se passa por trás do seu sorriso de homem de meia idade. É que Dr. P. sempre nos sorri. E nos confidencia seus prazeres. Orgulha-se. Oculta sua miséria. Quem sabe, alguma lucidez o visite certas noites, enquanto bebe os primeiros goles de uísque e ouve um blues, em sua casa de serra, sozinho, antes de as prostitutas chegarem... Ele nos observou pateticamente por uns instantes, e, como fôssemos condescendentes, preparou-se para sair da sala e caminhar entre as cadeiras, os leitos e as paredes do hospital.
Dr. P. é a denúncia de nossa zumbificação. É o nosso não-ser -- tão possível e fácil, meu Deus! Façamos um segundo de silêncio pelo Dr. P., por mim e por você. . Pronto, acho que vi um vaga-lume.