Este blog surge a partir do módulo "Arte e Literatura: Humanidades Médicas I" do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. O módulo tem por objetivo explorar, junto com as e os estudantes de graduação em Medicina, outras dimensões da práxis médica que não apenas as competências tecnológicas duras. Para isso, lança mão de recursos pedagógicos vivenciais e audio-visuais, trazendo elementos da Literatura, das Artes Plásticas, do Cinema, bem como das experiências pessoais compartilhadas pelas e pelos estudantes.
Apesar disso, hoje o blog não quer se definir. Aqui encontram-se estranhamentos e aleluias cotidianos de um contínuo tornar-se.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Mousse de limão



Os pés, cheios de distâncias, realizam sobre o asfalto seu movimento de maré. Caminho ao meio dia para sentir o ardor de viver. E agradeço às últimas árvores que restaram. Nós também temos raízes. Meus pés de argila procuram o seio materno em vão. Freud, Klein, Winnicott já nos explicaram tudo isso... Sim, porque a dança que dançamos é a do fim. E há sempre o asfalto mudo e insosso a nos recalcar de nós mesmos. Paro um instante na calçada verde. As mãos brancas, finas e mais ásperas do que parecem. Penso em tocar as rugas ancestrais de uma ávore mais gentil, brotada da Terra. Encharco-me de humanidade para ouvir seu grito sufocado. Seria capaz de surportar, meu Deus? Ela que pare seus algozes suicidas consternada como uma baleia e enrola-se sobre si mesma para existir. Encaramo-nos mudos por segundos. Chegou a ser minuto? Não sei. Não sabemos mais. Viver é coisa antiga demais para nós. É cheio de tempo. O tempo, nós o cortamos e esprememos e o vendemos aniquilado a ninguém. Quem quer tempo? Duas folhas secas rolam sua musiquinha crocante no chão. Minúsculos esqueletos sonoros. Os operários da construção ao lado da minha interlocutora retomam suas atividades suadas e põem fim ao nosso diálogo silencioso. Isso também é asfalto. Ouço uma cantiga efêmera sobre o entardecer. O xilofone dá um arzinho delicado e frágil à voz da cantora. Atravesso a trama de carros prata-ofuscantes e entro no supermercado. Faço movimentos descartáveis e falo coisas descartáveis.
-- É só isso?
-- Deixa ver: limão, leite condensado e gelatina incolor. É. Só isso mesmo.
-- Já é cadastrado? Não?! Que pena... você ganharia um desconto por trazer a sacolinha...

Fiquei sem desconto mesmo. Prefiro assim: sem sedativos. Um dia desses, ouvi de uma mulher bastante perturbada que estamos todos à beira do vulcão e que as pessoas nem se dão conta... Os últimos homens vivem parvamente suas alegrias obrigatórias e amortecem as dores. Se é assim, eu mesmo farei um mousse de limão e sorrirei meu sorriso de vaga-lume por um triz. Vamos! Voemos entrelaçados e pegajosos, então, até o ponto em que a luz apagar. Até que nada mais haja para ser lembrado. Mousse, azedo, mas tão doce quanto puder ser.

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