Este blog surge a partir do módulo "Arte e Literatura: Humanidades Médicas I" do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. O módulo tem por objetivo explorar, junto com as e os estudantes de graduação em Medicina, outras dimensões da práxis médica que não apenas as competências tecnológicas duras. Para isso, lança mão de recursos pedagógicos vivenciais e audio-visuais, trazendo elementos da Literatura, das Artes Plásticas, do Cinema, bem como das experiências pessoais compartilhadas pelas e pelos estudantes.
Apesar disso, hoje o blog não quer se definir. Aqui encontram-se estranhamentos e aleluias cotidianos de um contínuo tornar-se.

domingo, 21 de novembro de 2010

A Mulher de Lot

A mulher de Lot, que o seguia, olhou para trás
e transformou-se numa estátua de sal.
Gênesis


"E o homem justo seguiu o enviado de Deus,
alto e brilhante, pelas negras montanhas.
Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:
'Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar

as rubras torres de tua Sodoma natal,
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,
as janelas vazias da casa elavada
onde deste filhos ao homem bem-amado'.
Ela olhou e -- paralisada pela dor mortal --,
seus olhos nada mais puderam ver.
E converteu-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão se enraizaram.

Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?
E, no entanto, meu coração nunca esquecera
quem deu a vida por um único olhar."












(Anna Akhmátova -- Antologia Poética)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Para confessar pecados

Esta será minha penitência por ter passado tanto tempo sem aparecer por aqui sem motivo: confessar alguns pecados. Sim, porque é assim que compartilhamos nossa condição humana. O pecado -- ou melhor, sua confissão -- é, em certa medida, o ponto de partida para que se estabeleça um verdadeiro espaço de interlocução entre os indivíduos que permita um diálogo genuíno, sem heróis nem vilões, posto que o pano de fundo dos relacionamentos -- e aquilo que nos matém unidos -- é a consciência da decadência, não a da glória.

I
Pois bem, eu costumava ler a Veja. Perdoai. Mas é a mais pura verdade. Em defesa de mim, tenho a alegar apenas a ignorância da adolescência. Tinha por volta de meus 16 anos, terceiroanista... O fato é que havia uma foto da Lya Luft em suas colunas que sempre me dava a impressão de que ela estava prestes a falar: "Francamente!". Internalizei-a. Vez por outra ainda me surpreendo franzindo a testa e fazendo cara de Lya Luft.

II
Ter assistido novelas me estragou a cabeça. Comédias-românticas, romances e certos dramas também são culpados. Acuso-os de terem alimentado por tanto tempo essa ideia do amor trágico. Desses que se conduzem por impulsos mágicos, conjurando maravilhosos fantasmas narcísicos. Negação do corpo e da morte.
III
Certos abraços me deixam angustiado e tenho vontade de chorar horas depois sem mais-nem-menos. É que ser afetado me desconserta um pouco. Viver me deixa à flor-da-pele.
IV
Ter conhecido o cinema europeu me salvou um pouco. Adélia Prado também. Querer um amor feinho é também dizer sim à vida, à sua concretude, às suas múltiplas possibilidades, à emancipação de si e do outro. Por falar nisso, também quero dizer aqui que sou a favor das tentativas. Desses passos desajeitados que damos ao tentar nos erguer, ao dizer-nos, ao pronunciar o mundo, ao desejarmos ser. Sou a favor das tentativas de re-escrever-se, de criar linhas de fuga.
V
Escrevo coisas sem sentido, meio que em espasmos. Depois acho tudo muito violento. É como estar nu. A verdade é que crucifico um pouco minha criança interior, e ela, para se vingar, denuncia a minha impotência. E ri com gargalhadas infantis. Os homens, de forma geral, padecem de uma terrível inadequação à realidade desde o momento em que começam a brincar de super-herói, o que nos torna para sempre narcísicos delirantes absolutamente ingênuos. Acreditai. Este é, pois, nosso ridículo: permanecermos crianças. Mesmo aqueles a quem se ordena serem gauches, estes obedecem cegamente. Adélia diz: sou desdobrável. Sendo assim, quando escrevo, o faço caleidoscopicamente, juntando os cacos de minhas limitações distraidamente. Não quero fazer sentido. Quero inventar borboletas que me saiam pelos cabelos. Deixar o menino correr pelo jardim. Não repareis.