Este blog surge a partir do módulo "Arte e Literatura: Humanidades Médicas I" do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. O módulo tem por objetivo explorar, junto com as e os estudantes de graduação em Medicina, outras dimensões da práxis médica que não apenas as competências tecnológicas duras. Para isso, lança mão de recursos pedagógicos vivenciais e audio-visuais, trazendo elementos da Literatura, das Artes Plásticas, do Cinema, bem como das experiências pessoais compartilhadas pelas e pelos estudantes.
Apesar disso, hoje o blog não quer se definir. Aqui encontram-se estranhamentos e aleluias cotidianos de um contínuo tornar-se.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Com o risco de parecer clichê


É difícil acontecer em cidade grande, porque mal se vê o céu. Quando muito, é possível ver a lua por detrás de uma nuvem avermelhada que muito bem poderia ser fumaça. Mas isso não vem ao caso. O que eu ia dizendo é que caminhava distraído quando, de repente -- e não há outro jeito -- a estrela cadente riscou o preto da noite. "Então viver é isso, meu Deus! Como é bonito e inútil..." Sim, porque viver é ser uma faísca que se atira ao Mistério, num corte fino e preciso sobre o tecido da noite escura. Mal começa, e já não é coisa alguma. O que acontece com a faísca no instante seguinte em que já não mais se vê é segredo guardado nas entranhas do breu com seu Silêncio. Mas o que é possível saber é que, durante o instante quase inobservável em que a faísca escreve a si mesma no mundo, sua luz é, ao mesmo tempo, seu destino e sua mais extrema auto-afirmação. A faísca é libertária. Rasga a noite com a violência de uma dúvida. No entanto, ela não tem escolhas nem porquês. A faísca brilha sem motivo e é lançada na incerteza. Tudo o que pode e o que sabe é ser faísca. Dançar livre e ébria ao som do crepitar da madeira em brasa. E é nisso que consiste a sua beleza. Ela é inútil, sem sentido e fugaz: eis o encanto.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Lisbon Revisited

"NÃO: NÃO quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me
enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!"












(Álvaro de Campos - Fernando Pessoa, Poesias)

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Des souvenirs légers

É gostoso o cheiro da madrugada depois de chuva. O céu limpo se veste do índigo-perolado véu lunar, e damas-da-noite florescem. Brotam lembranças de noites passadas, quando, em certa época do ano, à noite, a lua decidia me embalar o sono e iluminava-me a cama inteira. Às vezes, eu deixava de lado o lençol para melhor sentir sua névoa prateada em minha pele. É a lua que nutre meus sonhos. A madrugada surte em mim o efeito de uma epifania etérea, sempre obscurecida pelo torpor do dia. E, ainda hoje, em noites assim claras, banhado em luz fria, tenho a impressão de ouvir no silêncio quase místico canções de ninar. Brilham sonzinhos de xilofone no céu.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Pra cobrir a solidão



"Pensei em repetir palavras mágicas para concentrar energia em cada uma delas, mas nenhuma me ocorreu. Abracadabras, shazams. Talvez não fossem necessárias, porque eu estava carregado de amor por nós todos. Falo banalidades, sei, mas amor é magia, condão, pedra de toque."




(Caio Fernando Abreu - Triângulo das Águas)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Aquela lá


Dia cinza a agudiza. Tudo fica quieto como se sempre já tivesse estado lá à espera. Em dias assim, também ela espera com atenção. Canções empoeiradas atravessam a fina e escura malha da caixinha de som e, pesadas, sedimentam-se espalhadas no chão ao seu redor. Na tela do dia frio, pintam cores densas que coalescem e criam mundos impossíveis. Como é possível ter vivido tantas infâncias, adolescências e romances e não os ter vivido? Os mundos que cria e que (re)produz, as (bri)colagens de memórias e de estórias, os sentimentos costurados em colcha de retalhos, tantas letras em si, Deus! Onde estava, enquanto a pele engrossava, os cabelos começavam a se despedir e...? Acho que preciso de um chá verde. Bem morninho, por favor. Que é pra ver se o peito aquece. Mas, como eu ia dizendo, sonhar não é ruim, não. É gostoso, na verdade. Ficar observando as gentes da janela com violetas também. Mesmo tomar chá ou ir ao cinema sozinho pode ser uma delícia. O que mata é esse silêncio que abraça gelado em dia cinza e que nos corta com alguma lucidez maldita. Fecha a janela sobre uma das folhas da violeta, tirando-lhe o fôlego por um instante. Na biblioteca, os livros mofados. Na cozinha, a pia cheia de panelas e travessas sujas de já esquecidas refeições. À mesa, ninguém. Nunca.

sábado, 9 de abril de 2011

Como se fosse Domingo à tardinha...


E existem também as alegrias mansas. Elas nos chegam assim tão macias e mornas quanto a lembrança de um abraço de avó. A alegria mansa não se localiza. Ela vem não se sabe de onde, e fica até a percebermos. Assim, descoberta, perde sua razão e evanesce. O instante mesmo em que o dedinho da criança toca a bolha de sabão. Sorriso bobo que não se sabe sorriso. Nomeado, já é outra coisa.

Só pode ter candura quem já sentiu a chegada doce e a despedida de uma alegria mansa. Ah! como dá saudade, meu Deus... Uma saudade sem rosto, sem nome, sem memória. Saudade que tateia o vazio entre eu e a leveza do mundo. O ar em minúsculos cachinhos escorre diáfano entre os dedos da mão espalmada à procura de quê. E, de repente, se ri por ter percebido que se estava a ponto de chorar só por causa do pôr-do-sol.

Nomeada, a alegria cala tudo. Depois de alegriazinha, fico assim silencioso por três dias, só escutando. É o corpo que escuta a vida. Passado o estremecimento, tudo volta à sua música caótica habitual. Poesia virou carne e sangue. Meu poema só pode ser escrito em braile.