Este blog surge a partir do módulo "Arte e Literatura: Humanidades Médicas I" do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. O módulo tem por objetivo explorar, junto com as e os estudantes de graduação em Medicina, outras dimensões da práxis médica que não apenas as competências tecnológicas duras. Para isso, lança mão de recursos pedagógicos vivenciais e audio-visuais, trazendo elementos da Literatura, das Artes Plásticas, do Cinema, bem como das experiências pessoais compartilhadas pelas e pelos estudantes.
Apesar disso, hoje o blog não quer se definir. Aqui encontram-se estranhamentos e aleluias cotidianos de um contínuo tornar-se.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Oração para o novo ano


Ó Deus, livra-me do pensamento-gaiola! Outra coisa não peço, senão isto.
Quero falar pétalas de borboleta. E escrever rastros de caracóis apaixonados.
As conchinhas todas enfeitadas, apenas adivinhadas por quem lê as trilhas brilhantes.
Que eu ouça tuas sístoles com meus poros
e que eu dance a vida na quietude do silêncio, que é teu doce Mistério.
Não, nada quero entender. Quero tão somente chupar o gosto do dia.
Água-viva palpitando no compasso do não-saber que é teu oceano profundo.
Amém.

Corpo: esta coisa entre coisas e além delas...

"Palimpsesto

Nosso corpo fala línguas que ele mesmo desconhece... Em tempos antigos, quando se escrevia em couro, costumava-se apagar o texto a fim de escrever um texto novo. As palavras eram raspadas e a superfície do couro era alisada com o auxílio de preses de elefante. Quando se percebia que nada do antigo texto restava, fazia-se uma nova escrita. E a antiga estava perdida, para sempre... Eles não sabiam, entretanto, que dentro do couro o texto antigo permanecia, invisível. Hoje, graças a técnicas modernas, ele pode ser recuperado. Eram os palimpsestos: couro sobre o qual muitos textos eram escritos. Nossos corpos: palimpsestos..."











(Rubem Alves - Do Universo à Jabuticaba)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Recorte distraído


"-- Você vai ser um pau.

-- Não quero ser um pau.

-- Mas você é um pau diferente. Você é um pau que canta."

(Li furtivamente quando pus os olhos no que me pareceu um script
que alguém lia no ônibus, no fim do dia)

Renda Portuguesa

Quatro e meia da tarde, a luz dourada e turva que, líquida, penetra os espaços pequeninos entre as pétalas das flores amarelas sob as pálidas telhas na varanda traz para mim uma serenidade de livro velho. Confunde-se com as sombras das árvores na grama molhada. Boiam sonhos na memória, e é possível que se veja um rapaz com trajes antigos a tramar uma fuga adolescente com a mocinha da janela. Ela traz os cabelos muito bem amarradinhos a 45 graus da linha das orelhas e deixa um cacho pender ao lado dos olhos, quase de propósito. Ele, alto e magro, tem o nariz comprido e os olhos estreitos, como todo homem. E existe tanta possibilidade nessa tarde perdida Deus sabe quando! É inútil tentar saber o que aconteceu aos jovens, porque a luz das quatro e meia logo dá lugar à noite e à farsa que são os postes e os faróis dos carros. Basta dizer que, naquela tarde, aquilo era a felicidade. E eu, cúmplice, assisti a tudo consternado. Sei guardar segredo. Na mesma hora, uma amiga me confidencia gritos. Guardo-os em potinhos, depois abro as tampas e liberto as borboletas negras com sua dança venenosa. Ainda há certas mariposas que estavam esquecidas sob o criado-mudo, é verdade. Espero a noite chegar plena, para liberá-las, porque estas são minhas, e há que se ter algum cuidado com mariposas. Bichinhos frágeis e terríveis. Alhures, outra amiga querida fica grávida de vida e dá à luz amor. Eu digo "sim!" e danço por dentro. Meu sorriso de fim de tarde é uma oração. Fecho os olhos e, secretamente, canto para Deus. Levinho, levinho.